Sem alternativas, clubes e funcionários passam por momento de incerteza.
por Matheus Gerlach
A pandemia do novo coronavírus que atingiu o mundo parece se arrastar para um cenário devastador no Brasil. O despreparo e a desinformação abalaram a economia, que pode registrar R$700 milhões de déficit em 2020, segundo Mansueto Almeida, secretário do Tesouro Nacional. Uma crise a nível global tem impacto em todos os setores da economia, e o futebol não fica imune aos problemas trazidos pela pandemia. Assim como nos demais setores da economia, as instituições com menor poder financeiro no futebol estão mais expostas aos desdobramentos da crise, e consequentemente, terão mais dificuldades para se recuperar na pós-pandemia.
O atual cenário do futebol brasileiro se baseia na relação entre a CBF, federações estaduais, clubes e seus funcionários, sejam atletas ou não. As ações dessa estrutura são como um efeito dominó, em que as peças são os desdobramentos da pandemia, que atingem clubes e seus funcionários.
Os clubes
A queda da primeira peça não tinha como ser prevista, muito menos contida de alguma forma. A paralisação dos campeonatos veio com a necessidade do isolamento social, e a partir disso, contratos de patrocínios foram suspensos, rendas com bilheteria não existem mais e, de uma hora para outra, clubes se viram em meio a um caos administrativo, onde qualquer movimento feito para minimizar isso, dará continuidade ao efeito dominó. Os clubes mais afetados são os de divisões inferiores, em especial os da Série D, e também times sem divisão nacional.
O primeiro impacto | A suspensão de contratos de patrocínio é algo inevitável para todos os clubes. O professor Marcelo Lamy, docente e vice-coordenador do Mestrado em Direito da Saúde da Universidade Santa Cecília, explica que em decorrência da pandemia, os clubes que não cumprirem suas obrigações contratuais, não estão inadimplentes com seus patrocinadores, já que é algo decorrente de uma força maior, entretanto, o patrocinador tem o direito de suspender o contrato. “Diante dessas circunstâncias, é preciso suspender o contrato até que se restabeleça o equilíbrio entre as partes, é a solução mais justa”, afirma o professor. Mas, para ele, essa suspensão pode ser parcial, buscando o meio termo para os clubes e patrocinadores, através de negociação de prazos, valores e formas que as partes podem cumprir suas obrigações.
Rodrigo Mendonça, do departamento de Marketing do ABC F.C., apontou que uma “bola de neve” se formou no clube. “Sem jogos, sem receita. Os patrocinadores se desligaram, os sócios aumentaram a inadimplência, os salários atrasaram e não tem de onde tirar dinheiro”, comenta. Para os clubes, o caminho é o corte de gastos, e a corda acaba estourando sempre para o lado mais fraco: os funcionários. No caso do clube potiguar, 50% do quadro de funcionários foi cortado, com demissões em diversos setores. Além disso, os atletas e comissão técnica enfrentaram um corte de metade do valor de seus salários. O clube de Natal está com vaga garantida na Série D de 2020.
Outros clubes, até mesmo de divisões superiores, também tomaram medidas para reduzir o valor pago aos atletas, como o Botafogo-SP, que suspendeu os contratos de direito de imagem de seus jogadores, representando um corte de 40% no valor mensal. Sem saída, dívidas se acumulam desde a paralisação do futebol, e a bola de neve aumenta cada vez mais.

Em um buraco maior ainda, estão os clubes sem divisão nacional. Eles possuem um curto calendário de competições, e organizam seus contratos para encerrarem em conjunto com elas. Com a incerteza da volta dos campeonatos, clubes foram obrigados a encerrar contratos com atletas, e somente com uma previsão de retorno das competições, podem se planejar para a volta do futebol.
A Portuguesa Santista, que estava na terceira colocação da Série A2 do campeonato paulista antes da parada, é um dos tantos clubes que passou por isso. A Briosa conversou com cada atleta individualmente, e negociou o pagamento parcelado das dívidas com todos os 23 jogadores desligados. Agora o clube aguarda a previsão de retorno das atividades para conversar novamente com os atletas.

Um elefante da cartola | Sem ter de onde tirar dinheiro, os clubes são obrigados a achar alternativas inéditas. Rodrigo Mendonça, entrevistado na matéria, elaborou no começo de abril um projeto para a venda de ingressos simbólicos, para a transmissão da final do campeonato potiguar de 2007, ocasião em que o Elefante goleou seu rival América por 5×2 e sagrou-se campeão. O clube ainda gerou um conteúdo em suas redes sociais como se estivesse às vésperas da decisão, fazendo a cobertura em tempo real enquanto a TV ABC transmitia a partida no YouTube. A campanha gerou quase R$30 mil de lucro para os cofres do alvinegro, e foi adaptada por diversos clubes.
No mesmo dia em que o ABC anunciou a campanha, a Rede Globo anunciou a transmissão da final da Copa de 2002, e desde então, transmite jogos da seleção e de clubes, e até corrida de Fórmula 1.
Os atletas
Os jogadores afetados pela pandemia podem ser divididos em dois grupos. O primeiro deles e com a situação menos desfavorável, são aqueles que ainda possuem vínculo garantido com o seu clube. Entretanto, mesmo para eles a dificuldade financeira ainda é a grande questão, já que muitos clubes não conseguem manter o salário em dia ou negociaram a redução dele com o próprio jogador, que claro, aceitou a redução, afinal, a manutenção do emprego já foi uma conquista.
Além disso, o isolamento social fez com que os atletas tivessem que treinar por conta própria. Embora os clubes enviem treinos para seus atletas, a perda técnica e, principalmente, física é iminente. O ABC e a Portuguesa, já citados na matéria, desde o início da pandemia mantiveram os treinos de seus atletas sob orientação do clube. Mas, na equipe paulista e em diversos outros clubes, esse acompanhamento foi interrompido durante a pandemia.
Gabriel Terra, meio campo da Briosa, foi um dos poucos atletas do clube que não teve seu contrato encerrado. Ele afirma que sua maior preocupação é a incerteza sobre o assunto. “Quanto mais tempos ficarmos parados, maior será o dano”, disse o atleta, que se mostrou preocupado com um eventual cancelamento do paulistão, “Infelizmente acredito que é isso que vai acontecer, o que certamente vai ser bastante danoso para todos”, completou. Gabriel informou que, dentro do combinado com o clube, está com o salário em dia.

Um número maior de atletas está em uma situação ainda pior. Espalhados por todo o Brasil, atletas que tiveram seus contratos suspensos, já que encerrariam em meio à pandemia. Mesmo atletas com contratos longos, correm o risco de perder o emprego ou o salário, que na imensa maioria dos casos não passa de 5 mil por mês.
Com a demissão em massa nos clubes e sem previsão de retorno, os atletas seguem como os demais trabalhadores afetados pela pandemia: à deriva. Sem clube, cada jogador é obrigado a treinar sozinho e aguardar a volta das competições para encontrar novamente um clube que o empregue. Além da perda técnica e física, as contas continuam chegando e preocupando a maior parcela dos jogadores, que não são badalados e sustentam suas famílias com dificuldades.
Recorde de lucros
A Confederação Brasileira de Futebol (CBF) divulgou uma receita recorde no ano de 2019: R$957 milhões, um aumento de 43% em relação a 2018. Além disso, R$215 milhões foram investidos nas Seleções e outros R$320 milhões investidos no Campeonato Brasileiro. A CBF apresentou um ativo de 1,248 bilhão no último ano.

O salto nos lucros da CBF não foi um fato exclusivo do ano passado. Desde 2010, quando foi apresentado um lucro de R$263 milhões, a receita total da entidade máxima do futebol brasileiro caiu apenas uma vez, em 2017. Nos últimos nove anos, a receita da CBF cresceu 263%.
No início de abril, a CBF anunciou um auxílio de valores equivalentes à média de duas folhas salariais dos atletas aos clubes das Séries D e C do Brasileirão masculino e A1 e A2 do Brasileirão feminino, o que representa R$200 mil aos clubes da Série C, R$120 mil para clubes das Séries D e A1 e R$50 mil para os clubes da Série A2. Somados, os 140 clubes receberam pouco menos de R$16 milhões. Além disso, as federações estaduais receberam um auxílio de R$120 mil cada uma, totalizando pouco mais de R$3 milhões. Todos os auxílios chegam a R$19,12 milhões, menos de 2% do que entrou nos cofres da CBF ano passado.
Quando ajuda, ainda atrapalha | O Deputado Federal Marcelo Aro (PP-MG) é o relator do Projeto de Lei que visa suspender o Profut, programa que permite parcelar o parcelamento de dívidas de impostos. O Projeto é uma alternativa já prevista pela CBF, que no fim de março, teria encaminhado ao Ministério da Cidadania, um ofício solicitando o congelamento do Profut durante a pandemia.
Mas, além disso, o projeto aborda de itens previstos na Lei Pelé, o que causou polêmicas. Uma das propostas é a redução de 50% na cláusula de rescisão de contrato unilateral, para atletas que ganham acima de R$12 mil por mês. Felipe Augusto, presidente da Federação Nacional dos Atletas de Futebol é contrário à ação. “Seja o que ganha um salário mínimo ou dez salários. Isso pouco importa. O adequado é com o debate envolvendo todas as partes. A urgência não justifica qualquer projeto de lei que vise modificar os contratos de trabalho”, alegou Felipe. A Proposta de Lei foi adiada, tendo a pauta retirada de votação. O texto passará por alteração para seguir com seu principal objetivo: a suspensão das parcelas.
Potencializando o problema
No final do mesmo mês, 210 dirigentes de clubes que disputam as segundas divisões estaduais solicitaram, dentre outras coisas, um auxílio de R$100 mil. Alegando que todos contribuem com as taxas das federações, a carta endereçada a Rogério Caboclo, presidente da CBF, também solicitou a isenção de taxas de federações estaduais, além de tornar facultativa a contribuição para Federação das Associações dos Atletas Profissionais e também que a CBF levasse ao Governo Federal, a proposta de que os clubes também sejam contemplados em programas de incentivo.
Renato Paiva, presidente do Democrata de Sete Lagoas, publicou uma carta aberta, cobrando que as federações auxiliem esses clubes: “Nosso fôlego acabou. O desequilíbrio financeiro gerado nas últimas décadas chegou ao seu limite. Estamos pedindo socorro. Não só com um apoio financeiro imediato, o que seria um antitérmico, mas com uma reestruturação do futebol que nos devolva a dignidade”, relatou.
Para Avenilson Trindade, economista especializado em gestão financeira, gestão pública e planejamento estratégico, até uma eventual retomada das competições deve ser um processo complicado. “Tendo uma retomada gradativa, a receita também tenderá ser a ser gradativa, e com isso (o clube) deverá ter uma estratégia de custos que possibilite evoluir em suas atividades até retomar o equilíbrio”, relatou Avelino. Ele também destaca que para retomar as atividades, os clubes precisarão de recursos financeiros e um apoio vindo das federações e CBF. “Principalmente os menores”, completou o economista torcedor do Genus-RO. Para ele, o maior desafio para que hajam acordos entre as federações, CBF e clubes, é a dificuldade de articular as necessidades e os interesses das partes.
Os clubes citados até agora na matéria representam uma mínima parcela da verdadeira quantidade de equipes afetadas, que navegam em um mar de incertezas, com dívidas pulando pelas janelas. São clubes espalhados pelo Brasil, alguns deles com grande história, que criam milhões de empregos, diretamente ou não, que são obrigados a demitir em todos os setores.
Em meio a esse caos, no dia 28 de abril, a CBF se reuniu virtualmente com as federações estaduais para discutir o calendário e a volta gradativa dos treinos. Nesse dia, o Brasil bateu o recorde vigente de óbitos por covid-19 em 24 horas, registrando 474 mortes. Um mês depois, a CBF autorizou a Federação Paraibana a acelerar os processos de volta ao estadual, na mesma semana em que o Governo da Paraíba dava sinais de que pretendia estender a quarentena e deixá-la ainda mais rigorosa na região metropolitana de João Pessoa, capital do estado.
Além do caos na estrutura financeira do futebol brasileiro, outra preocupação ronda os atletas: a segurança para a volta às atividades. O já citado Gabriel Terra, contou que a ansiedade para voltar é geral, mas claro, que de forma segura. “Todos nós estamos loucos para voltar, mas também temos que ter o mínimo de segurança para isso”, comentou. Para ele, a volta só deve ser cogitada quando houver total segurança.
A paralisação dos campeonatos, a primeira peça do efeito dominó que atingiu os clubes, foi identificada pela CBF e as federações como o principal problema trazido pela pandemia. Entretanto, as ‘peças’ seguintes, como a recuperação dos clubes, desemprego e a saúde dos envolvidos, devasta as agremiações e funcionários. Sem ajuda da CBF e desesperados, alguns clubes, dirigentes e atletas fortalecem o coro pedindo a volta do futebol, mesmo com o país batendo o recorde de morte por covid-19 em 24h, registrando 1349 mortes no dia 3 de junho.
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