
por STÉFANO SALLES; repórter do Extra e editor do Deu Zebra
De dentro do gramado, as caixas de som voltadas para as arquibancadas embalam com canções árabes a torcida que começa a chegar ao Estádio Municipal de La Cisterna, em Santiago, deixando a sensação de que, a qualquer momento, começará um espetáculo de dança do ventre. A casa do Palestino fica em uma das mais humildes das 32 comunas que compõem a capital chilena. Uma área de poucos atrativos turísticos e violenta, que inibe os visitantes à medida que o carro avança pela estrada acompanhando a orla do Rio Mapocho, naquele trecho, já transformado em um pequeno córrego. Dentro do alçapão, o clima é familiar. Com capacidade para dez mil pessoas, o estádio está liberado para receber três mil torcedores. Não é exagero dizer que boa parte deles se conhece pelo nome: apenas 1,4 mil apareceriam na manhã daquele sábado para ver o jogo contra o Éverton, de Viña del Mar, iniciado às 11h por falta de iluminação artificial.
As estimativas de descendentes de palestinos no Chile variam entre 300 mil e 350 mil habitantes. O número não chega a impressionar quem vive em um país de dimensões continentais como o Brasil, mas é suficiente para garantir ao grupo o título de maior colônia palestina no exterior. Na arquibancada oposta às sociais, junto à pequena torcida organizada, tremula a bandeira da Palestina, que empresta suas cores, preto, branco, verde e vermelho, ao clube, conhecido na Faixa de Gaza e na Cisjordânia como “a segunda seleção do povo”.
Jogos ao meio-dia são normais na cultura esportiva chilena. O horário é utilizado até mesmo para clássicos e, desde as primeiras horas da manhã, já há gente de plantão nos bares, à espera do apito inicial. Traído pelo relógio do celular, que não ajustei para o fim do horário de verão, cheguei uma hora antes do previsto a La Cisterna, quase duas antes de a bola começar a rolar. Tempo suficiente para constatar atentamente detalhes como a falta de placar eletrônico no estádio e a ausência de um sistema inteligente de irrigação. Ali, tudo é feito à moda antiga: dois funcionários, dentro do campo, molhavam a grama. Enquanto um segurava a mangueira para aliviar o peso, o outro a direcionava para as partes mais ressacadas do campo. Há quatro meses não chove na cidade e isso afeta até o esporte, totalmente analógio.

— La Cisterna é assim, mas está longe de ser o pior estádio do Chile. O Palestino é muito forte neste local e sempre que pode, atua aqui como mandante. Só os jogos de maior apelo, como contra o Colo-Colo ou de competições internacionais, leva para o Estádio Nacional ou para o Santa Laura — explica o torcedor sentado a meu lado.
Santa Laura não é o destino preferido de Los Árabes. Sem condições de rivalizar com frequência com os maiores clubes do país, o Palestino, detentor de dois títulos nacionais, faz seus clássicos contra os demais clubes das colônias: o Unión Española, dono do estádio, e o Audax Italiano.
Geopolítica da afirmação
A camisa branca é a preferida da torcida, embora a preta faça mais sucesso entre os estrangeiros. No entanto, a beleza dos uniformes parece ficar em segundo plano para os locais. Para a torcida do Palestino, o mais importante é marcar posição. Por isto, a camisa mais vista era a de 2014. Nela, o número um era substituído pelo mapa da antiga Palestina, isto é, anterior à criação de Israel, em 1948. Na ocasião, Patrick Kiblisky, presidente do Ñublense que, como sugere o sobrenome, tem ascendência judaica, obteve na justiça a proibição do uso do uniforme em partidas por conta da conotação política. A Federação Chilena de Futebol multou o Palestino em um valor equivalente a cerca de R$ 3 mil, o que não impediu que a peça se tornasse fenômeno de vendas e ícone da cultura pop chilena. No entanto, é impossível comprá-la no estádio: vendas, apenas pela internet.
Minutos antes de os times entrarem em campo, um locutor assume o microfone e, como uma dose quente de café preto, desperta o público pedindo uma salva de palmas para a luta do povo palestino, respondida com animação pelas arquibancadas. Atrás do gol, os visitantes limitam-se a observar, respeitosamente. Nos cânticos, nenhuma referência a Israel ou ao povo judeu. Em apoio aos campeões nacionais de 1955 e 1978, apenas o tradicional, repetitivo e (perdoem, chilenos) pouco criativo incentivo adaptado por todas as torcidas locais: “Chi-chi-chi Le-le-le, Palestino de Chile”. Ecos de um clube que preserva sua tradição, renovada por bases locais e, portanto, predominantemente cristãs.
— Não tenho ascendência árabe ou palestina, mas cresci aqui perto e aprendi a gostar do Palestino, que hoje é o meu time. Acho justa a reivindicação do povo palestino por seu estado e classifico como inaceitáveis as colônias israelenses dentro de Cisjordânia e Gaza, mas isso não faz de mim um muçulmano. É solidariedade — explica o universitário Domingo Eduardo López, que se descreve como católico não praticante, enquanto degusta um sanduíche de carne com molho de abacate e bebe Coca-Cola em um copo descartável: o café da manhã mais popular de La Cisterna naquela manhã.

Embora os laços entre a diretoria e a comunidade palestina sejam fortes, poucas vezes isso pôde ser visto dentro de campo. Somente em 2016 Los Árabes tiveram pela primeira vez um no elenco um jogador nascido na Palestina: o meia Shadi Shaban, contratado por empréstimo intermediado pelo Bank of Palestine, patrocinador do clube. Os dirigentes negam que contratar um jogador judeu seja um tabu, mas é algo que ainda não aconteceu.
Esse é o clube que está no Grupo A da Taça Libertadores da América, ao lado de Internacional, River Plate e Alianza Lima. Mas pouco disto poderá ser visto no Estádio San Carlos de Apoquindo, em Las Condes, casa da Universidad Católica, onde os árabes tem jogado e divulgado sua causa na competição continental. Para o Palestino, o fator casa é determinante para sua identidade. Algo muito mais complexo do que mero exercício de mando de campo.
Deixe uma resposta